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Seminário internacional e curso discutem representação das periferias e sua potência
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Fundação Tide Setubal apoiou o Instituto Maria e João Aleixo na realização das atividades, que envolveram ativistas, intelectuais e líderes comunitários de diversos países

Após dez anos de atuação no Jardim Lapenna, a Fundação Tide Setubal ampliou seus trabalhos para outras periferias, não por meio do atendimento direto e da prestação de serviços, mas pelo apoio a organizações locais que já atuam nessas regiões e buscam fortalecer as potências periféricas e promover justiça social e desenvolvimento sustentável.

Um dos primeiros exemplos de aproximação com novas localidades ocorreu por meio do contato com o geógrafo Jailson de Souza e Silva, professor da Universidade Federal Fluminense, fundador do Observatório de Favelas e diretor executivo do Instituto Maria e João Aleixo, na Maré, Rio de Janeiro. “A aproximação em si começou com o convite para fazer parte do evento de dez anos da Fundação, em 2016, mas a gente já tinha tido um contato em uma palestra minha no Unicef em anos anteriores, onde conheci algumas pessoas que faziam parte da Fundação. Vi muita identidade desde o início, com as discussões sobre o território, e muita presença de conceitos que para nós, que observamos favelas, são valiosos”, conta Jailson.

Em 2017, em conversas entre o geógrafo e a Fundação Tide Setubal, foi constatada a vontade em comum de estimular a criação de uma rede que envolvesse atores de diferentes periferias em torno de discussões sobre temas como a representação dos territórios, suas potencialidades e desafios. Assim, a Fundação Tide Setubal acabou por apoiar duas iniciativas do Instituto Maria e João Aleixo em parceria com o Observatório de Favelas e Redes da Maré: o seminário internacional O Que É Periferia, Afinal, e Qual o Seu Lugar na Cidade?, com patrocínio do Itaú Social, e o curso Inventividades Socioculturais das Periferias, realizado em parceria com as Redes de Desenvolvimento da Maré e também com patrocínio do Itaú Social e do Instituto Unibanco.

O seminário, realizado em março, reuniu no Complexo da Maré 100 pessoas de 15 países, como Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, Inglaterra, Itália e Índia. Após discutirem diferentes narrativas e a concepção simbólica do que é periferia, os participantes criaram de forma conjunta o documento Carta da Maré, Rio de Janeiro – Manifesto das Periferias: as periferias e seu lugar na cidade. Entre outros pontos, a carta defende que “a definição de periferia não deve ser construída em torno do que ela não tem em relação ao modelo dominante na dinâmica socioterritorial ou da distância física em relação ao centro. Ela deve ser reconhecida pelo conjunto das práticas cotidianas que materializam uma organização genuína do tecido social com suas potências inventivas, formas diferenciadas de ocupação do espaço e arranjos comunicativos contra-hegemônicos e próprios de cada território”. Leia a carta completa aqui.

Residência cosmopolita

Dando continuidade à ideia de criar uma rede que pense a periferia a partir dela mesma, o Instituto Maria e João Aleixo, o Observatório de Favelas e as Redes da Maré ofereceram a jovens de diversas cidades brasileiras e estrangeiras a oportunidade de participar de um curso que teve o fazer coletivo em sua base e buscou novas formas de produção de conhecimento e valorização dos saberes periféricos contemporâneos. Chamada de Inventividades Socioculturais das Periferias, a residência aconteceu na Maré e contou com patrocínio da Fundação Tide Setubal, do Itaú Social e do Instituto Unibanco.

Na especialização, os estudantes fizeram uma imersão no território, com o intuito de romper estigmas e criar uma rede internacional de fomento ao conhecimento periférico. “Trabalhamos o conceito de potência da periferia para levar à superação dos estereótipos da carência e dos estigmas de violência que marcam profundamente os territórios populares e impactam, sobretudo, os jovens das periferias”, afirma Jorge Barbosa, diretor do Instituto Maria e João Aleixo. “Não buscamos reproduzir o modelo hegemônico de conhecimento que é apenas transmitido dos professores para os alunos. Na especialização, trabalharemos com a combinação dos saberes coletivos e individuais, pensando nos participantes como seres inventivos e criativos, que nos trazem novas vivências e experiências. Queremos valorizar essas diferenças.”

A necessidade de diversificação esteve em mente durante a seleção dos participantes, momento que contou com Viviane Soranso, da Fundação Tide Setubal, na banca. Entre os escolhidos estavam artistas, produtores culturais, ativistas e pesquisadores de periferias de países como Colômbia, México, Cabo Verde, Portugal, Guiné-Bissau e Brasil (dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí e Pernambuco).

Nos seis meses de residência, eles viveram na Maré. Mas, para ampliar ainda mais seu repertório, em novembro, os jovens fizeram uma imersão em São Paulo, vivenciando as diferentes periferias paulistanas e suas características. Nesse intercâmbio, os residentes dividiram seu tempo entre o Coletivo Imargem, que tem sede no Grajaú, zona sul da cidade, e o Galpão de Cultura e Cidadania, equipamento da Fundação Tide Setubal na zona leste.

Durante a estadia no extremo sul da cidade, eles conheceram locais como a Ecoativa, na Ilha do Bororé, o Espaço Cita, o ArraStart_Lab e Agência Solano Trindade, no Campo Limpo. As atividades contam com a colaboração de outros membros da Rede Internacional das Periferias em São Paulo, como Tony Marlon (Historiorama) e Tiely (Movimento Hip Hop e LGBT).

Já no período em que se hospedaram na zona leste, os jovens visitaram iniciativas importantes para a região, como o Instituto Nova União da Arte (NUA), na União de Vila Nova, e o Instituto Pombas Urbanas, na Cidade Tiradentes. Além disso, eles conversaram com o colegiado do Plano de Bairro do Jardim Lapenna e acompanharam o Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, que acontecia naquela semana.

Em uma ida à região central de São Paulo, os residentes ainda visitaram o Museu Afro Brasil. A experiência impressionou sobretudo os participantes do continente africano, que nunca haviam visto um museu do tipo. “Me marcou o Museu Afro Brasil porque eu sou cabo-verdiano, e muito daquela história tem a ver comigo, sendo africano. E eu não conhecia uma sistematização tão boa, tão boa quanto aquele museu”, diz Alexssandro Silva Robalo, residente do curso.

“Os residentes trouxeram uma visão bem ampla sobre as desigualdades socioespaciais e também acerca das questões de gênero e raça. A circulação deles pela cidade mostrou a dificuldade de mobilidade que apresentam as pessoas que estão nas periferias, algo que apareceu nas falas de avaliação dos jovens. A participação deles no Festival do Livro também foi colocada como muito positiva”, diz Wagner Silva (Guiné), coordenador de projetos da Fundação Tide Setubal.

Confira um vídeo com observações dos residentes sobre sua experiência em São Paulo: